quinta-feira, 9 de julho de 2009

Litígio

Eu sei: reencontros são sempre felizes. Mas o da moça, hoje, na padaria, ah... hoje não deu. Não deu pra ser feliz. Moça, você sabia que a sua voz parece a de uma gralha fanha? E sabia que ela é tão alta, mas tão alta, que todas as pessoas, que só estão tomando alegremente seu cafezinho no fim da tarde, vão parar a vida delas porque os decibéis e o timbre agudo da sua voz, ao bradar as saudades que sentiu da Carol, vão penetrar profundamente no tímpano de cada uma? E a conversa, até há pouco agradável, vai ser interrompida pelas atenções prestadas enquanto você conta pra sua tia gorda e pra amiga de bingo dela onde é que vocês se conheceram e há quanto tempo vocês não se viam? E que, nossa - você diz - a Carol tem que ser sua advogada, porque no Brasil, quando um caso vai pro litigioso, ah, demora...

E mesmo quando você se acalmar, moça, todos vão ouvir a história do seu pai maluco, mentiroso, que só namora vagabunda e daí pra baixo. E, haha, você falou isso pra amante dele quando ela resolveu ligar na sua casa, na casa onde sua mãe jazia no leito de morte??? E, moça, sua mãe consolou mesmo a amante, agora coitada, que passou a perna no safado do seu pai?

Moça, eu sempre tive respeito pelo leito de morte da minha mãe. Mesmo quando o médico disse que não dava mais jeito, que a partir dali era só a morfina e o conhaque quando ela quisesse. E ao falar do meu pai, ainda que ele seja mentiroso, e embora eu não saiba se ele namora vagabundas-coitadas, eu até que mantive a pose... Além disso, logo que reencontro amigas tão queridas quanto essa sua parecia ser, moça, eu só quero contar as novidades, as coisas frescas e coloridas. E não quero que elas fiquem tão constrangidas como a sua ficou porque tava todo mundo lá praticamente sentado na mesa com vocês. Até a senhora elegante do casal sentado de frente pra mim compartilhou do meu sorriso desesperado de "meu deus, o que tá acontecendo? Eu só queria esperar calmamente pelo suco de laranja com morango".

Moça, eu até fiquei pensando se você tinha namorado, namorada, fucker friend, consolo ou coisa assim. Mas logo pensei que isso não era da minha conta. Nem entra na sua, afinal, com essa voz e - desculpe, eu tive que virar pra ver - com essa cara, moça, nem cachorro você tem.

Moça, desculpe se pareço ríspida. Não pense mal de mim... Moça, eu sempre tive a voz estridente e alta. E, é, moça, eu também não tenho um namorado. Mas ainda assim, moça, eu posso dispensar a você esse quase desprezo: afinal, minha voz, pior que seja, não é a sua; além disso,eu tenho amiga querida, gato e samambaia. Por isso, moça, guarda esse segredo: se você continuar assim, só vão restar mesmo a tia gorda e a amiga de bingo dela - o que pode não parecer tão ruim, pois elas devem ser meio surdas e devem gostar de uma história histericamente encenada. Mas, não, não era isso que eu queria dizer. Moça, se você parar e pensar um pouco, vai entender porque a Carol ficou tanto tempo sem lhe ver. E, pior, porque ela vai ficar mais tempo ainda: eu não sei se você lembra, mas a Carol trabalha com direito administrativo.